Elísio de Carvalho



Alckmar Luiz dos Santos


Interessantíssima figura essa, a de Elísio de Carvalho. Notável pela diversidade das produções, dos interlocutores, dos interesses intelectuais. O nome Elísio faz referência imediata aos Campos Elíseos, da mitologia grega e, coincidentemente, é citado de vez em quando como poeta parnasiano. Ainda, foi participante das rodinhas da LivrariaGarnier, que reunia a intelectualidade bem-pensante de finais do século XIX e inícios do XX, no Rio de Janeiro. Até aqui, em resumo, uma figura como a de tantos outros, aparentemente ligado aos estereótipos do intelectual conservador brasileiro próximo à Academia Brasileira de Letras. Todavia, Elísio foi também um dos participantes da Semana de Arte Moderna, conforme noticiado na edição de 29 de janeiro de 1922, por O Estado de São Paulo. Não se estranha, portanto, que seu nome também se encontre entre os participantes de congressos e iniciativas libertárias ou, melhor dizendo, anarquistas. Em 1906, realizou-se no Rio de Janeiro o 10° Congresso Operário Brasileiro, com a colaboração de vários intelectuais, mais ou menos assumidamente anarquistas. Após o Congresso, lançaram a revista Floreal, que contava com Domingos Ribeiro, Fábio Luz, Curvelo de Mendonça, Lima Barreto (certamente o mais conhecido atualmente) e... Elísio de Carvalho. Pouco antes, em 1904, Elísio já havia sido o principal animador da Universidade Popular d´Ensino Livre, localizada no Rio de Janeiro e onde, entre outras coisas, dava conferências, como a que fez sobre Kropotkin, na sede da Universidade, na Rua são José, num festival literário realizado em 11 de outubro daquele mesmo ano.

Contudo, há que se destacar que, em 1906, ano do Congresso Operário, Elísio foi encarregado de receber o poeta Rubén Darío, que era então o secretário da Delegação da Nicarágua à Conferência Pan-Americana, encontro que iniciou um diálogo interessante e ainda não suficientemente estudado do poeta nicaraguense com a literatura brasileira.

Mas a revista Floreal acima citada não foi a única publicação de que tenha participado Elísio de Carvalho, ou que tenha sido lançada e dirigida por ele. Antes, em 1906, já aparecia entre os colaboradores da revista carioca Renascença (Rodrigo Otávio e Henrique Bernardelli), uma espécie de rival da muito bem considerada Kosmos, e que contava com gente de peso: José Veríssimo, Coelho Neto, Olavo Bilac, Guimarães Passos, Sílvio Romero, Paulo Barreto (João do Rio), Araripe Júnior, Vieira Fazenda, MaxFleiuss, Afonso Celso e outros. Ou seja, o anarquista de 1910 e o modernista de 1922 publicava no mesmo espaço dos próceres do academicismo, como Coelho Neto e Sílvio Romero, ou dos que tentavam meio timidamente renovar nossa literatura, caso de João do Rio. Mas ainda antes disso, aos 19 anos de idade, esse alagoano da cidade de Penedo[1], já lançava, sempre no Rio de Janeiro, a revista Meridional. Pouco após, em 1903, lançou A Greve, que se afirmava como jornal proletário e anarquista. Na esteira d’A Greve, veio Kultur, em 1904, anunciada como revista “filosófica e literária”, mas abertamente ligada aos movimentos proletários e anarquistas da então capital federal. Em 1919, lançou no Rio de Janeiro a Revista Nacional, curiosamente quase ao tempo em que, em São Paulo, o grupo de intelectuais ligados a’O Estado de São Paulolançasse a Revista do Brasil, rapidamente passada às mãos de Monteiro Lobato.

Em suma, vemos em Elísio a figura do intelectual com múltiplos interesses e atividades, sem medo do diálogo com setores menos revolucionários da intelectualidade, sem receio de meter-se em projetos políticos e culturais de escassíssimas possibilidades de serem bem-sucedidos.

João do Rio, em seu O Momento literário, afirma:

O Sr. Elísio de Carvalho representa por si só uma porção de pequenos movimentos literários, reflexos de pequenas escolas francesas.

A princípio, a propósito da antiga história de um soneto, resolveram jurar que o Sr. Elísio não escrevia nada — mas o Sr. Elísio tem escrito tanto e a respeito de tanta coisa pouco conhecida no Rio que forçoso foi dar-lhe atenção.

O Sr. Elísio de Carvalho conta a história do seu espírito com um prazer evidente. Lê-lo é saber o que fizeram de 1897 para cá os tremendos jovens nefelibatas, hoje socialistas...


Luiz Edmundo, em O Rio de Janeiro do meu tempo, conta de Elísio que ele

“... pela época, casa-se com mulher rica, instalando-se na rua do Riachuelo, organiza uma notável biblioteca de moderna literatura, mandada buscar diretamente à Europa: livros franceses e ingleses, espanhóis, italianos, quase sempre em edições de grande luxo, volumes impressos em papel de Holanda, China e Japão, coleções raras e caríssimas. Empresta livros a todos os seus amigos e mesmo aos que não são. Exemplares únicos aparecem, no fim de algumas semanas, pelos balcões dos sebos da cidade, outros desaparecem para sempre, sem que saiba, exatamente, onde... E a caixotaria a chegar da Alfândega, e mais os pacotes, as faturas, os catálogos... E o Elysio como um nababo, a encher as estantes, dele, dos amigos, dos sebos da rua de São José... Esse delíriobibliomaníaco, do qual se aproveitavam, honestamente, diga-se de passagem – certos intelectuais pobres, da sua maior intimidade, só acaba quando o dote da mulher se esgota, no dia em que a uma roda de amigos, no fundo de sua linda e rica biblioteca, folheando uma coleção de affiches de Mucha, posta em volume numa edição valendo muito mais de mil francos, ele diz, embora sem grandes apreensões e cuidados:

“– O pior é que o dinheiro acabou. Felizmente prometeram-me um emprego aí numa repartição qualquer...

“Nesse momento, Elysio de Carvalho, o bibliômano mais moço da cidade, não tem mais de vinte anos. Convém não esquecer que, por ocasião de sua morte, anos depois, lega à sua família uma biblioteca importante, riquíssima, sobretudo em obras históricas sobre o Brasil e sobre a América.”

De sua produção literária, diz Brito Broca, em A vida literária no Brasil — 1900:

Five o´clock é justamente o título do livro em que Elísio de Carvalho nos deixou curiosa documentação sobre aspectos e figuras dessa boêmia dourada na primeira década do século. Num estilo afetado, com grande extração de termos estrangeiros, em tudo semelhante ao de João do Rio (a quem o livro é dedicado); carregando ainda mais na nota original, o cronista descreve-nos uma comparsaria mundana do refinamento e decadentismo que parece moldada pelas silhuetas nevrálgicas de Jean Lorrain.”

E a aproximação com o Decadentismo não é fortuito. É o que explica, em boa parte, o interesse de Elísio por Oscar Wilde, de quem foi divulgador e tradutor no Brasil, a exemplo da Balada do Enforcado, publicada em 1899.

E é esse penumbrista, decadentista, anarquista, participante das rodas literárias da Garnier e da Semana de Arte Moderna, autor de estudos de teoria e de história literárias (como As modernas correntes estéticas na literatura brasileira) ou de sociologia (Esplendor e decadência da sociedade brasileira), de contos (Five o'clock), de poemas (Horas de febre), é ele quem ainda nos surpreende uma última vez. Dele diz Fábio Luz, amigo e militante anarquista:

“Nós íamos fazer conferências nas portas das fábricas. Aos domingos reuníamos na sede da Universidade todos os camaradas. Depois os contribuintes para a manutenção das aulas incorreram em faltas graves de administração universitária, sendo responsabilidade por tudo isso o reitor, que era Elísio de Carvalho.

“Este se afastou totalmente e a universidade teve de fechar suas portas.

“Elísio foi ocupar um cargo na política e chegou a ser diretor do instituto de identificação criminal, debaixo da proteção do atual diretor e redator do Jornal do Comércio, doutor Félix Pacheco, ex-ministro de relações exteriores, deputado e senador.”[2]

Pois o intelectual adepto da revolução do operariado se tornou funcionário da polícia do Rio de Janeiro e autor de estudos técnicos, entre os quais A luta técnica contra o crimeA polícia cariocaL'organisation et le fonctionnement du service d'identification de Rio de JaneiroLa police scientifique au BrésilO laudo da perícia gráfica do caso da rua Januzzi n° 13. Como dizia acima, interessantíssima figura essa, a de Elísio de Carvalho!


[1] E morto na Suíça, na cidade de Schaldalf, em 1925.

[2] RODRIGUES, E. O anarquismo na escola, no teatro, na poesia. Rio de Janeiro, Achiamé, 1992, p. 210.

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